Educação híbrida dá os primeiros passos no Brasil, num aprendizado forçado pela pandemia. Entre as várias iniciativas desse período trágico, o blended learning deve permanecer como método de educar para os novos tempos
Por Edimilson Cardial
A trajetória de Maria Inês Fini mostra sua inquietude intelectual voltada para a educação. Entre vários cargos que ocupou no cenário nacional, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O educador Mozart Ramos costuma dizer que ela é uma referência no campo educacional e que “inspira na construção de políticas públicas no Brasil”. É doutora em educação, pedagoga, e pesquisadora em psicologia da educação, especialista em currículo e avaliação. Junto a um grupo de educadores resolveu criar a Associação Nacional de Educação Básica Híbrida (ANEBHI). Essa ideia nasceu, segundo ela, do entusiasmo e solidariedade de alguns profissionais da educação brasileira com o trabalho dos professores da educação básica durante a pandemia.
Desde março de 2020, esse grupo procurou apoiar os professores, ajudando-os a se reinventar. Foi aí que se consolidou a criação dessa associação sem fins lucrativos, como oportunidade de criar um espaço para que as excelentes experiências que a escola brasileira estava vivendo não se perdesse, e mais, criar um suporte para transformá-las em conhecimento.
O objetivo, nas palavras de Maria Inês Fini, é criar uma comunidade colaborativa de professores e gestores para abrigar essas experiências e dar-lhes uma curadoria acadêmica, transformando-as em conhecimento e divulgando-as. “Temos mais de 100 conselheiros nas diretorias entre os mais renomados educadores brasileiros. Há alguns parceiros fundadores que nos ajudaram a viabilizar os primeiros passos.”
A seguir, a entrevista:
O que define um ensino híbrido?
Preferimos usar o conceito de educação híbrida que pressupõe ensino e aprendizagem presencial e ensino e aprendizagem remota.
Uma escola que dá aula online está aplicando a educação híbrida?
Não. O conceito da educação híbrida vem do “blended”, que significa misturado, e não pode se configurar como tal sem o ensino e aprendizagens presenciais.
A educação híbrida fora da escola estará sempre atrelada à tecnologia ou em casa o aluno pode ter, por exemplo, atividades baseadas em projetos?
A educação híbrida pode valer-se de uma grande variedade de recursos tecnológicos para as etapas remotas sempre em complementação às atividades presenciais. Metodologia de projetos é uma modalidade didática muito motivadora para envolver alunos de todos os níveis e modalidade da qual o professor pode se valer tanto nas atividades presenciais como remotas ou, preferencialmente, combinando ambas de forma híbrida.
Saindo da realidade atípica pandêmica, o modelo híbrido é autorizado para a educação básica brasileira?
Não há legislação que regule a estrutura do planejamento curricular que se estruture como uma proposta de educação híbrida. Desde que demonstre o cumprimento dos dias e horas letivos e as determinações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e das DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais), as escolas têm autonomia para definir sua arquitetura curricular dentro dos parâmetros de educação híbrida.
Como resolver a situação de uma família cujos pais trabalham fora e que têm de se ausentar? Como controlar o tempo e a dedicação aos estudos?
As escolas sempre mandaram lições para serem feitas em casa, na forma de grande variedade de exercícios pós-aula presencial como fixação e verificação de conceitos ou leituras prévias para preparo de novas aprendizagens. O que mudou quando os pais ficaram em casa foi, de um lado, maior visibilidade das tarefas a serem realizadas e a constatação de uma rica variedade de trabalhos propostos aos alunos, e de outro, a intensa presença dos professores no cotidiano dessas famílias por meio dos diversos recursos de interatividade com os quais os professores brasileiros, tão corajosos e criativamente, mantiveram os vínculos com seus alunos e entre eles. Seja por meio de plataformas digitais, pela TV, pelo rádio, pelo WhatsApp, telefone, recados pelo telefone do vizinho, envio de tarefas com a merenda pelo transporte escolar e posterior recolha, a escola se reinventou num tempo muito curto e seus esforços devem ser comemorados pela sociedade.
Qual é o aproveitamento do aluno comparando o ensino presencial e a distância?
Não podemos igualar o conceito de educação híbrida com educação a distância. Essa última tem legislação própria para ser aplicada no ensino superior onde se pressupõem autonomia cognitiva e de autogestão da aprendizagem total por parte dos alunos. A educação híbrida pressupõe um projeto pedagógico que integra ensino e aprendizagens presenciais às remotas de tal maneira que as diferentes etapas não se substituem, antes se complementam. A educação híbrida requer materiais pedagógicos próprios, meios de comunicação que permitam interatividade com e entre alunos durante a fase remota e que sejam suportados pelos recursos tecnológicos possíveis a cada comunidade escolar, envolvendo professores e famílias, e que permitam personalização de percursos curriculares e avaliação adaptativa que indique aprendizagens a serem repostas.
A educação híbrida prevê um professor à disposição do aluno a todo momento. Isso é viável?
A educação híbrida é protagonizada pelo mesmo professor da classe que deverá combinar em seu plano de trabalho as atividades de ensino e aprendizagens presenciais e remotas e não necessariamente sua “presença virtual” na casa dos alunos, ou em outro espaço da escola precisa ser sempre ao vivo. Podem ser vídeos gravados, roteiros impressos, etc.
Como uma escola deve fazer o planejamento para adotar esse novo sistema presencial e a distância?
Creio que uma das lições mais preciosas da pandemia para as escolas está sendo o despertar para esse mundo interligado que já fazia parte da vida cultural dos alunos. Reconhecemos e valorizamos o papel da escola e do professor, vislumbramos outro vínculo mais próximo entre escola e família, aprendemos de uma vez que informação sozinha não é conhecimento e que na educação básica, o conhecimento de crianças e jovens para ser construído precisa da mediação do professor, mas acima de tudo aprendemos a melhorar as rotinas pedagógicas das escolas usando recursos tecnológicos de informação e comunicação. Não podemos perder essas aprendizagens, antes precisamos robustecê-las.
Deverá ocorrer uma mudança no currículo para a inclusão de aulas a distância? Como fazer isso na escola pública?
O planejamento pedagógico pós-pandemia impõe a toda escola de educação básica, seja publica ou privada, outra composição curricular, considerando incorporar a riqueza dos recursos do ensino e aprendizagens remotos em complemento à educação presencial, numa abordagem híbrida.
Onde a escola vai gastar mais: em tecnologia ou em mais professores?
Essa é uma questão muito interessante que nos remete a um grande equívoco quando pensamos em modernizar nossas escolas.
A tecnologia e a respectiva conectividade são importantíssimas num projeto pedagógico inovador, mas elas não são o coração da escola. São complementos necessários, possíveis de diferentes formas a uma comunidade escolar, mas sempre estarão a serviço de uma robusta proposta pedagógica feita por professores e equipes técnicas. Então, a resposta à sua pergunta é: mais para os professores, mais e melhores condições de trabalho, mais adequada formação continuada.
O professor vai preparar uma aula presencial e os conteúdos digitais separadamente. Ele vai dar conta disso?
Se isso acontecer, será um fracasso total. Quem interage com os alunos para favorecer seu desenvolvimento e consequentes aprendizagens dos alunos é o professor, ele é o maestro. Imagine a dissonância que haveria se as abordagens não forem integradas, principalmente se feitas por professores diferentes ou assistentes?
Nossos professores não tiveram uma formação para o mundo digital, daí o grande valor de suas rapidíssimas apropriações desde o início da pandemia. Então vamos arregaçar as mangas e ensiná-los a usar os mais variados recursos tecnológicos e de informação disponíveis para que se tornem autônomos na estruturação de seus projetos, vamos empoderá-los, mesmo porque seus alunos já dominam esses recursos de Aa Z.
Como avaliar os alunos a partir desse novo formato?
A maneira mais tradicional de lhe dar essa resposta seria indicar que a avaliação na educação híbrida deveria ser realizada nas etapas presenciais. Isso daria conforto e segurança aos pais e professores além de garantir o controle visível da aprendizagem.
Mas seria falacioso de minha parte negar os excelentes insumos que já estão na cultura da avaliação, referidos a outras maneiras de avaliar além dos tradicionais testes padronizados, cuja preparação tem de ser muito cuidadosa para que os resultados possam evidenciar as aprendizagens já desenvolvidas e indicar aquelas que ainda precisam melhorar. Eu me refiro a instrumentos mais holísticos de avaliação, como estruturação de portfólios, digitais ou não, elaboração e execução de projetos, questionários de autoavaliação, quiz, vídeos, entre outros que as novas metodologias ativas estão a nos mostrar e dos quais precisamos nos apropriar melhor.
Conteúdo originalmente publicado na Revista Educação – Novembro de 2020.