Por Laurito Miranda Alves
Laurito Miranda Alves é bacharel e Mestre em Matemática pela UFMG, com especialização em formação docente pelo Centro Lemann da Escola de Educação da Universidade de Stanford. lauritoalves@uol.com.br
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) mostra-nos como deve ser, no mínimo, o ensino da Matemática na Educação Básica brasileira. Para a etapa do Ensino Fundamental, o texto desse documento diz: O conhecimento matemático é necessário para todos os alunos da Educação Básica, seja por sua grande aplicação na sociedade contemporânea, seja pelas suas potencialidades na formação de cidadãos críticos, cientes de suas responsabilidades sociais.
Já para a etapa do Ensino Médio, para toda a área da Matemática, é proposto:
A BNCC da área de Matemática e suas Tecnologias propõe a consolidação, a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental. Para tanto, propõe colocar em jogo, de modo mais inter-relacionado, os conhecimentos já explorados na etapa anterior, a fim de possibilitar que os estudantes construam uma visão mais integrada da Matemática, ainda na perspectiva de sua aplicação à realidade.
Como a BNCC para o Ensino Fundamental foi homologada pelo Ministério da Educação em 20 de dezembro de 2017, a do Ensino Médio quase um ano depois, em 14 de dezembro de 2018, já temos mais de dois anos que esse documento está vigente, teoricamente norteando o ensino no Brasil. Já houve tempo para que, pelo menos, um início de adaptação a essas propostas estivesse sendo colocado em prática ou, na pior das hipóteses, sendo ao menos discutido nas escolas. Não é isso o que vemos.
Na maioria das vezes, não há muita diferença entre uma aula de matemática dos anos 70 ou 80 do século passado, época em que fui estudante de Educação Básica, e uma aula dos dias de hoje, quarenta anos depois. Um dos principais argumentos que são apresentados para justificar essa perenidade do modo de ensinar é a afirmação que “A Matemática não muda”. Sim, é verdade, a Matemática não mudou, 3 + 2 era igual a 5 no meu tempo, continua sendo 5 hoje e assim será para sempre, porém o mundo mudou. Temos, hoje, calculadoras baratas e acessíveis, literalmente milhares de sites e aplicativos capazes de realizar cálculos e resolver equações, inclusive mostrando o passo a passo do processo, comunicações globais e tantos vídeos disponíveis com aulas expositivas de Matemática e resolução de questões que uma vida seria pouco para poder ver todos. Neste novo mundo, não é possível que métodos e práticas eficientes e consagradas de quarenta anos atrás ainda sejam as melhores disponíveis.
A BNCC deu-nos alguns desafios e um deles é a formação de um cidadão crítico. Esse cidadão precisa ser capaz de formar e expor suas ideias; precisa ser capaz de ouvir uma ideia, analisá-la e tomar uma decisão: ou corroborá-la ou expor suas debilidades e propor uma nova forma de pensar; precisa ser capaz de identificar erros e manipulações de outras pessoas, de informes publicitários e alguns “excessos” divulgados nos meios de comunicação; precisa também pensar no custo e nas consequências de suas ações para a sustentabilidade do planeta. Para tudo isso, o conhecimento matemático é fundamental. Professores precisam capacitar seus estudantes nessas práticas, mas isso não será alcançado enquanto o modelo pedagógico basear-se em aulas expositivas seguidas de questões alheias à realidade dos estudantes, cujos resultados não fazem o menor sentido. Qual o objetivo de questões cujo comando é “Calcule”? Precisamos ter coragem para admitir que, quarenta anos atrás, se eu não aprendesse a calcular, ninguém mais calcularia para mim, mas hoje não é assim. Professores têm de ter consciência que o conhecimento matemático é muito maior na modelagem da questão e na elaboração de um método que a resolva, não na execução dos cálculos. Esse último, em nossa sociedade, não é mais feito por humanos, mas por máquinas. Não adianta tentar lutar contra isso, pois em uma situação em que máquina e homem fazem a mesma coisa, o homem sempre é pior na execução desse processo e a máquina sempre vencerá por ser muito mais rápida e precisa.
Precisamos evitar algumas práticas que ainda ocorrem. Fico abismado quando encontro questões que, por exemplo, pedem a altura de uma montanha e a resposta é de 31km e ninguém, nem estudantes ou professores, questiona que a maior montanha do planeta não tem nem 9km de altura. Esse seria um bom momento para estimular o lado crítico dos estudantes (e do professor). Outro ponto que ainda me causa espanto é quando o estudante resolve um problema, analisa a situação corretamente, desenvolve uma estratégia matematicamente correta, executa essa estratégia e, durante um cálculo ou em uma passagem menos importante, comete um pequeno erro, chegando a um resultado incorreto e, por isso, recebe uma nota zero. Como ser crítico se o processo é irrelevante e apenas a resposta é considerada?
Como agir? A BNCC deu-nos o caminho: aplicação na sociedade contemporânea (Ensino Fundamental) e aplicação à realidade (Ensino Médio). Matemática é aplicação, é resolver problemas reais, com valores reais – com calculadoras ou outras máquinas, caso os cálculos envolvidos não sejam elementares – com crítica aos resultados obtidos, com exposição oral e justificada de processos e resultados, se possível, com dois ou mais processos distintos para uma mesma situação, propiciando o debate. Por exemplo, uma vez, vi uma aula de matemática em que o professor desafiou os estudantes a imaginarem moedas para cobrir todo o chão da sala de aula, criando um piso de moedas, propondo um projeto em equipe. Era obrigatório o uso de, pelo menos, dois tipos de moedas e a formação de um desenho no piso, como um mosaico.
É necessário um grande conhecimento de Matemática para a solução desse problema, com cálculo de áreas, formas de empilhamento e descrição detalhada de custos, mas a resposta não é única, cada equipe tinha seu próprio projeto. Além disso, um dos focos do trabalho era a apresentação do projeto, no qual as equipes precisavam convencer os demais que sua proposta era a melhor, além das discussões e convencimentos internos no grupo para fecharem uma proposta de todos, não de apenas um deles.
Precisamos adequar o ensino da Matemática na Educação Básica ao que prega a BNCC, com mais críticas e aplicações, com uso de máquinas quando necessário, com problemas reais. Precisamos valorizar processos, não resultados. Estudantes devem ser capazes de justificar-se e explicar seu modo de pensar, devem defender seus pontos de vista e aceitar outros, se melhores que seus próprios. Modelar é mais importante que calcular.
A Matemática deve participar de trabalhos interdisciplinares, principalmente com a área das Ciências da Natureza, de onde várias de suas aplicações práticas podem ser trabalhadas. A Matemática é parte da vida, não um mundo com regras próprias descoladas da realidade. Enfim, é preciso eliminar a famosa pergunta dos estudantes: “Por que preciso aprender isso?” e principalmente, abolir a terrível resposta de alguns professores: “Porque vai cair na prova”.
Fonte: REVISTA BIS – ANO 12 | Nº54 | ABR/JUN 2021 [SinepMG]